Os serviços de fornecimento de água e esgoto foram privatizados em Manaus e no interior do Amazonas há 20 anos. Antes, o sistema era operado por uma empresa estatal. A concessão vale por 30 anos. Mas, bem antes, os resultados da privatização já foram contestados pela população. A tarifa aumentou, na capital falta água e o esgoto não chega a dez por cento das moradias. No interior nenhum município foi atendido. O Estado voltou a colocar recursos para que não haja um colapso no atendimento. Manaus está na frente de dois dos maiores rios do mundo, o Negro e o Solimões, e o estado inteiro em cima de um imenso aquífero.
O governo federal apresentou no final do ano passado, mais precisamente no dia 28 de dezembro, a Medida Provisória 868, que seria para atualizar o marco legal do saneamento básico e alterar uma lei de 2000. Com a mudança, passaria à Agência Nacional de Águas a responsabilidade para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento básico em todo país. Ainda no ano passado, outra medida provisória, a 848, já tratava do mesmo assunto. Porém foi derrotada no plenário da Câmara dos Deputados.
Porém, trabalhadores da área de abastecimento e saneamento básico, assim como especialistas, alertam que a MP encaminha para a privatização do setor.
Para discutir a situação, as Comissões de Direitos Humanos e Minorias, de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia, a de Legislação Participativa e a de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados promoveram, nesta segunda-feira (15), uma audiência pública que reuniu cerca de duzentas pessoas.
Solicitaram o encontro o presidente da CDHM, Helder Salomão (PT/ES) e também os deputados Edmilson Rodrigues (PSOL PA), Glauber Braga (PSOL/RJ) e Luiza Erundina (PSOL/SP).
Em 2010, a Organização das Nações Unidas declarou que água e saneamento básico são direitos humanos. Dessa forma, a água seria um bem de todos e não poderia ter dono.
“A sociedade vem demonstrando grande preocupação com a possibilidade de o governo entregar os serviços de saneamento para a exploração por empresas privadas, que já era uma sinalização do governo anterior. Essa preocupação acontece porque é um setor altamente lucrativo e essencial à população mais pobre”, explica o presidente da CDHM, Helder Salomão (PT/ES).
Renata Vallim, da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), destaca que hoje existem todas as condições técnicas e científicas adequadas para promover a dignidade humana. Mas, alerta, não é o que acontece.
“Aonde há falta de saneamento e água, as mulheres pobres são os primeiros e mais prejudicados. Um relatório da ONU de 2016, mostra que as mulheres são responsáveis pela garantia de água nos lares, gastam de duas a oito horas diárias para buscar água. E nesse trajeto, sofrem violência sexual e ataque de animais, abandonam a escola e o trabalho, quando tem. Tomar banho e lavar roupa pode levar a contrair doenças também. E não é só na África ou na Índia, mas na zona rural do Brasil e Nordeste também”, diz Renata.
Para ela, a nova medida provisória é uma reedição da anterior, retira as atribuições das agências estaduais e torna a ANA responsável pelas tarifas em todo o país. “Sabemos que a ANA não tem corpo técnico e não tem como cobrir as diferenças regionais. A MP entrega o saneamento para a iniciativa privada e cada município vira refém da licitação, e os menores a cargo do Estado. E também traz o fim do subsídio cruzado, que garante boas tarifas par todos”.
Edmilson Rodrigues (PSOL/PA) reitera que “o governo federal não desiste de tentar entregar os serviços de água e esgoto às empresas privadas. No ano passado, os movimentos sindical e popular, com muita organização e mobilização ajudaram a derrotar outra MP que tinha o mesmo objetivo. Agora, o novo governo pretende dar continuidade a essa proposta que, se aprovada, significará a total desestruturação do saneamento básico no Brasil”.
Reestatização x privatização
No mundo todo já foram registrados mais de 267 casos de reestatização dos serviços de esgoto e água. Os motivos foram a falta de transparência, precariedade, aumento dos preços e a insatisfação usuários.
O Brasil ocupa o segundo lugar neste ranking, onde 77 municípios do Tocantins e o Itu em São Paulo voltaram a ter serviços públicos para o setor. Em primeiro lugar está a França.
Também já decidiram reestatizar esses serviços cidades como Berlim, Buenos Aires e Budapeste.
Os altos lucros, em detrimento dos serviços, ditam a onda de privatizações. De acordo com uma pesquisa de 2017 do Instituto Mais Democracia, 58 por cento das empresas privadas que atuam em saneamento básico são ligadas a cinco instituições financeiras internacionais, e essas empresas atendem 88 por cento dos municípios.
“A privatização do saneamento básico, segundo o entendimento de movimentos com quem já nos reunimos, está na contramão do que está acontecendo no mundo, com inúmeros exemplos de privatizações fracassadas, vários países estão reestatizando os serviços, aproximadamente 835 serviços privatizados estão voltando para o controle estatal ao redor do globo”, pondera Helder Salomão.
Resultado contrário
Ana Lúcia Britto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Observatório das Metrópoles vai ao ponto dos maiores prejudicados com a medida proposta pelo governo federal.
“Nenhuma empresa privada que quer lucro, vai atender a população rural dispersa, a população de baixa renda, os assentamentos, as periferias e as favelas. O setor privado investe muito pouco com dinheiro próprio. E se não fizeram até hoje, não vai ser agora, é óbvio. Além disso, não temos regulação de prestação de serviços privados. A lógica do lucro não é compatível com o atendimento da população mais pobre. Essa medida provisória é uma política torta e vai ter resultado contrário porque vai ter que ser investido mais dinheiro público onde o privado não terá interesses”, destaca Ana Lúcia.
Ela cita o exemplo de Uberlândia, onde uma política pública oferece 400 metros cúbicos gratuitos para famílias pobres, e nem por isso o município faliu.
“Queremos a garantia de recursos públicos para o setor de saneamento, o fortalecimento da capacidade técnica, o fortalecimento do controle social, e a retomada do Conselho Nacional das Cidades”, acrescenta a professora.
“Foi uma MP feita a toque de caixa. Acaba com o subsídio cruzado, onde se arrecada mais dos ricos para beneficiar os pobres e dá o filé para o setor privado e o osso para o setor público”, exemplifica Igor Pontes Aguiar do Sindágua do Distrito Federal.
Diferenças regionais
Camilo Capiberibe (PSB/AP) lembra das diferenças entre as regiões do país.
“Vejam a discrepância regional, 99 por cento do Distrito Federal tem água em casa e 89 por cento esgoto. No Amapá, 34 por cento tem água e 3,8 por cento tem esgoto. As piores situações estão no Norte e Nordeste. E o que os governos fazem? Empurram o setor público para o sucateamento e, quando é para privatizar, quem paga é o consumidor. As empresas querem coberturas e subsídios. Água não é mercadoria, vamos juntar esforços e derrubar, mais uma vez, essa medida provisória”, ressalta Capiberibe.
Thiago Ávila, do Fórum Alternativo Mundial da Água acrescenta que “o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, além da recuperação e proteção das nascentes, das áreas de mananciais, e das matas ciliares estão intimamente relacionados ao desenvolvimento sustentável das cidades, combinadas com as necessárias políticas de desenvolvimento urbano, principalmente a política habitacional”.
Congresso Nacional
No Senado já aconteceram duas audiências públicas sobre a MP 868 e ainda esta semana deve haver outra. O senador Tasso Jereissati quer fazer a leitura do relatório final até o dia 23 de abril.
Tramitam no Congresso Nacional uma série de iniciativas de parlamentares propondo alteração no artigo 6º da Constituição Federal, para acrescentar o acesso à água e ao saneamento como direitos sociais, assim como acontece com a saúde, habitação e transporte.
“A oferta de água potável de qualidade e o esgotamento sanitário afetam diretamente na melhoria dos indicadores de saúde da população, sobretudo dos mais pobres. O Estado não pode se eximir desta responsabilidade sob pena de prejuízos imensos para a saúde pública de forma geral”, conclui o presidente da CDHM, Helder Salomão.
Também participaram do debate Malu Ribeiro, da Fundação SOS Mata Atlântica; Gabriel Alves da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento; Pedro Blois, do Sindicato dos Urbanitários do Pará; Roberto Cavalcanti Tavares, da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento e Marco Helano Fernandes Montenegro, do Observatório Nacional pelos Direitos à Água e ao Saneamento.
Pedro Calvi / CDHM