Amanhã, quarta-feira, 28 de agosto, faz 40 anos que a Lei 6.683, a Lei da Anistia, foi assinada pelo então general presidente João Batista Figueiredo. O Brasil vivia tempos da chamada abertura lenta e gradual. A ditadura militar estava a caminho do fim. Cerca de sete mil pessoas viviam exiladas fora do país. Os porões da ditadura ainda mantinham aproximadamente oitocentos presos políticos. Nesta terça-feira (27), as Comissões de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados promoveram o seminário “Amarga Espera”. Uma espera de quatro décadas por reparos na lei que, ao mesmo tempo que libertou presos políticos e trouxe milhares de brasileiros que viviam no exterior, também liberou de julgamento agentes do Estado que torturaram e mataram. O encontro foi solicitado pelos deputados Leonardo Monteiro (PT/MG) e Erika Kokay (PT/DF).
“Essa lei tem duas partes que não conversam entre si e é muito mal compreendida pelo sistema de justiça. Os torturadores diziam que agiam em nome do Estado, e crime político é, por definição, algo que se faz contra o Estado. Portanto, não poderiam estar incluídos na Lei de Anistia”, explica Deborah Duprat, procuradora Federal dos Direitos do Cidadão. Duprat destaca que a justiça de transição prevê a “reparação, construção de locais de memória para lembrar do terror cometido pelo Estado e requer também a reforma das instituições e, principalmente, a responsabilização dos agentes dos crimes cometidos em nome do Estado. E nada disso foi feito”. Ela lembra que cortes internacionais de justiça afirmam que a autoanistia “não convive com a democracia”.
Na época da assinatura da Lei havia apenas dois partidos legitimados pelo governo. A Aliança Renovadora Nacional (Arena), que apoiava a ditadura e tinha maioria no Legislativo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que fazia oposição. O texto aprovado não libertou imediatamente todos os presos políticos, já que não anistiava presos condenados por atos terroristas, assaltos e sequestros. Esses, foram libertados após julgamento. Dessa forma, a anistia beneficiava, além das vítimas do golpe militar, militares responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos de opositores do regime. Ao contrário de países que também viveram sob ditadura, como a Argentina e o Chile e que julgaram os torturadores, no Brasil, até hoje, apenas o militar Carlos Alberto Brilhante Ustra foi processado por crimes de tortura. Esse formato ficou conhecido como “autoanistia”.
O presidente da CDHM, Helder Salomão (PT/ES) pondera que “não era essa a lei que a sociedade brasileira queria, mas em um Congresso de senadores biônicos foi a possível”. Salomão alerta ainda que “passaram 40 anos e os tempos obscuros estão de volta, rondando a democracia brasileira e é fundamental manter a nossa capacidade de resistência neste momento”.
2019
Leonardo Monteiro, presidente da CLP, lembra que “depois de um longo período, com a criação da Comissão da Anistia e a edição de outras leis reparadoras dos direitos das vítimas e perseguidos políticos da ditadura, embora sempre incompletas, hoje os anistiados enfrentam novos desafios e dificuldades, com os retrocessos impostos pelo governo empossado em 2019”. Ele acrescenta que a inclusão da palavra irrestrita na lei “serviu para anistiar os que cometeram crimes, mataram e torturaram durante a ditadura e agora queremos um reencontro do país consigo mesmo”.
Eneá de Stutz e Almeida, ex-conselheira da Comissão Nacional de Anistia, reforça esse sentimento. “Hoje, com muita frequência, duvidamos do nosso futuro. Hoje ficamos com enorme perplexidade diante do desmanche das instituições e com os afrontas à Constituição. A formação atual da Comissão da Anistia é espúria. Nossos antepassados são nossos verdadeiros heróis”.
“Estamos vivendo um momento de revisionismo cruel, querem revisar reparações e direitos conquistados, ao mesmo tempo que querem perpetuar as barbaridades cometidas durante a ditadura, vingança mesmo”, afirma Everaldo Bezerra Patriota, da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
O primeiro presidente da CDHM, o ex-deputado Nilmário Miranda, ressalta que a justiça de transição é uma conquista da humanidade e foi criada ainda nas primeiras guerras mundiais, por causa dos genocídios. “São os crimes de lesa humanidade. Hoje, o governo federal vai contra isso e contra um processo civilizatório”.
Greve e anistia
Luciano Campos, da Associação Brasileira dos Anistiados Políticos do Sistema Petrobras e Demais Empresas Estatais, lembra da greve em 30 unidades da Petrobras em 1964. “Foram 351 demitidos, 259 receberam a indenização e 91 esperam até hoje a reparação”.
“Greve tem a ver com anistia e direitos humanos. E tivemos uma anistia inconclusa e hipócrita. Esse tema é civilizatório, serve para um governo compreender o que é democracia e o governo atual vai contra o que é civilizatório”, comenta Aderson Bussinger, da OAB do Rio de Janeiro.
“Não queremos que a Lei seja alterada, queremos que seja cumprida. Já está previsto nela que todos que cometem crime de lesa humanidade não podem ser anistiados. E esse tipo de crime foi cometido aos montes durante a ditadura”, esclarece o capitão José Wilson da Silva, presidente da Associação de Defesa dos Direitos dos Atingidos por Atos Institucionais. “Foram 604 oficiais, mais de 4 mil marinheiros e cabos e cerca de 1.300 sargentos que tiveram direitos cassados, foram perseguidos. O Estado é feito pela classe que domina e aplica as leis de acordo com os seus interesses. Nós, das classes subordinadas, temos o dever de nos unir. Não estamos pedindo favor, queremos aquilo que tiraram de nós na ponta da pistola, nosso trabalho e nossa dignidade”, conclui o capitão de 87 anos de idade.
A história
Em 1977, ano marcado pela volta das manifestações estudantis, o movimento pela anistia ganha expressão nacional com a organização nos estados dos Comitês Brasileiros pela Anistia e a adesão de diferentes organizações, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O movimento ganha também a adesão dos sindicatos, que desafiavam o regime com greves que reuniram milhares de trabalhadores na região do ABC paulista, no final de 1978. Em 1979, com o projeto da Lei de Anistia, apresentado por João Figueiredo ao Congresso e a atuação do senador Teotônio Vilela, os presos políticos iniciam uma greve de fome nacional em todos os presídios, de 22 de julho a 22 de agosto. O período coincide com a análise do projeto no Congresso Nacional. No dia 28, deputados e senadores votam e aprovam a proposta da ditadura militar.
O movimento pela anistia teve um personagem emblemático, a advogada Therezinha Zerbini, que criou o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), em 1975. Esse movimento teve vários comitês espalhados pelo Brasil com o apoio da Igreja Católica.
Mais sobre a Lei
Cerca de 16 mil brasileiros recebem algum tipo de reparação através da Lei da Anistia, que abrange o período que vai de 1961 a 1979. Muitos já morreram e os viúvos recebem o benefício. São dois tipos de concessão. Um, de prestação continuada com valor máximo de seis mil reais. Outro, de pagamento único com teto de 100 mil reais. Eles são pagos a pessoas que sofreram perseguição política, banimento, tortura, por exemplo. Cerca de mais 10 mil processos ainda estariam, segundo o Comitê Brasileiro pela Anistia, no Ministério da Justiça para julgamento da concessão. Esses processos beneficiariam civis, militares, índios e lavradores, por exemplo. Muito além dos números, existem histórias de civis, indígenas, camponeses e militares que perderam direitos, família, trabalho, foram torturados, assassinados e muitos desaparecidos até hoje.
Também participaram do seminário João Vicente Goulart , do Instituto João Goulart; Prudente José Silveira Mello, ex-conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Aleinaldo Silva, representante dos Petroquímicos;
Paulo Bezerra, dos Anistiados e Aposentados dos Correios e Telégrafos do Estado de São Paulo (AACETESP); Joviniano Neto, da Associação Tortura Nunca Mais; Lahis Rosa ex-integrante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça;
José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da Universidade de Brasília e
Mateus Gamba Torres , pro da UnB.
Sobreviventes
“Estou aqui na condição de sobrevivente, a ditadura por pouco não nos matou e as ditaduras são covardes, matam sob tortura. E hoje, o espectro da ditadura militar toma forma na figura do presidente da República. Não podemos permitir que nossas esperanças sejam sufocadas”, diz Emiliano José, jornalista e ex-preso político.
Pedro Calvi / CDHM
Fonte: site da Câmara dos Deputados/ CDHM