“O poder decidiu que temos que consumir veneno. Temos uma liberação de agrotóxicos como jamais se viu. Mas não é só a liberação, tem o campo dominado pelo agronegócio, sem reconhecimento de terras indígenas ou quilombolas. Houve derramamento de óleo em grande parte do litoral e os planos de emergência não foram acionados, o mesmo com a mineração em terras indígenas. Vivemos um mundo de suspensão”, afirma Debora Duprat, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão.
Duprat alerta que há um quadro de irresponsabilidade empresarial no país. “As empresas têm, assim como o Estado, o dever de promover direitos humanos. Mas, nos desastres de Mariana e Brumadinho não tiveram nenhuma responsabilidade assumida e muito menos no judiciário brasileiro. Até a destruição ambiental é desigual no Brasil. Os danos e ganhos ambientais são uns nos centros oligárquicos, com alimentação e parques bem conservados, mas na periferia a poluição está liberada e vira depósito de todo lixo daquilo que se chama de desenvolvimento”.
Dyarley Viana, ex-catadora e assessora Técnica do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) dá um exemplo dessa situação. Ela mora na Vila Estrutural, em Brasília, a poucos quilômetros do Congresso. No local ficava o conhecido “lixão da Estrutural”, considerado o maior da América Latina e que foi desativado pelo Governo do Distrito Federal em 2018.
“Mas fizeram tudo errado, tiraram o trabalho de milhares de catadores, aterraram tudo com toneladas de cimento em cima de lixo orgânico, que vai produzir uma quantidade imensa de gás metano. Na verdade, o objetivo era nos afastar das áreas centrais da cidade porque somos negros e pobres. Viana diz que “quem governa o nosso país esquece da nossa condição de humanos, que precisamos de água para beber e terra para plantar e comer. Precisamos repensar nosso consumo também, porque ele consome também algumas vidas. A fome está de volta ao país, mas só para pobres, periféricos e pretos”.
Aline Sousa da Silva, presidente da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis (Centcoop), conta para o relator da ONU que são feitas manobras que para que o tratamento dos resíduos seja feito como um bem capital e não como um bem para o meio ambiente. Ou seja, bem tratado. “Enquanto priorizamos a reciclagem fazendo o trabalho de formiguinhas, incineram ou aterram tudo. É prejuízo econômico e para a saúde. Devia haver uma gestão inteligente priorizando as cooperativas de tratadores e a coleta seletiva, no contrário só se posterga o problema ambiental”.
Desastres em série
O coordenador da Comissão Externa destinada a acompanhar as investigações que visam apurar as responsabilidades pelo derramamento de óleo no nordeste brasileiro, João Daniel (PT/SE), informa que o primeiro registro do derramamento e óleo na costa foi dia 30 de agosto e só em 5 de outubro, depois de uma denúncia feita por políticos e movimentos ambientalistas, que o governo federal fez menção ao tema. Naquele momento o petróleo já havia chegado a 11 estados e 126 municípios. “E até hoje não se sabe a origem do óleo. Cada estado busca uma forma de resolver a situação, como limpar e para onde levar. São milhares de registros de contaminações de pessoas, como em Cabo de Santo Agostinho em Pernambuco. São centenas de pessoas contaminadas, principalmente os mais pobres que vivem da pesca, contaminação de estuários, corais. Estamos vivendo a destruição total da proteção ambiental no Brasil desde o dia 1 de janeiro de 2019”.
Heider José Boza, do Movimento dos Atingidos por Barragens, relata os problemas de saúde provocados pelo rompimento da barragem de Mariana (MG). Exames feitos pela Universidade de São Paulo apontaram efeitos dos metais no organismo. Foram pesquisados 10 componentes: alumínio, arsênio, bário, cádmio, chumbo, cobalto, manganês, mercúrio, níquel e selênio. Entre esses, arsênio, níquel e manganês foram os que apresentaram alterações em algumas pessoas.
“Os moradores relataram problemas de saúde. Doenças de pele , aparecimento de furúnculos, coceiras e ardências, câncer, aumento de abortos espontâneos e depressão. Mas praticamente não há acompanhamento médico especializado às vítimas da lama”, exemplifica Boza. A pesquisa da USP colheu amostras de 300 participantes, e mostra que 298 apresentaram aumento de arsênio no sangue, 75 com nível elevado de níquel e 14 com índice acima da média de manganês.
Leonardo Penafiel Pinho, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), pede que os sistemas internacionais de direitos humanos tripliquem a atenção sobre o Brasil. “Houve o aniquilamento dos espaços de participação social, entre eles o Conselho Nacional do Meio Ambiente, diminuindo em 76 por cento a participação de membros da sociedade civil”.
Pinho destaca a falta de respostas do governo aos desastres ambientais. “E o pior, criminaliza os defensores ambientais. O ministro quis criminalizar os protetores do meio ambiente pelo derramamento do óleo, e pelas queimadas na Amazônia. Desde o início do ano já foram mais de 382 novos registros de agrotóxicos, 40 por cento deles proibidos em outros países”. O presidente do CNDH informa ainda que uma pesquisa recente mostra que um em cada quatro municípios brasileiros têm um coquetel de agrotóxicos na água que é servida à população.
O desastre causado pelo derramamento de óleo era uma tragédia anunciada para Miguel dos Santos, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares. “Nos primeiros quatro meses de 2019 já haviam sido reportados quatro vazamentos e, mesmo assim, o governo extinguiu os comitês responsáveis pela proteção”.
Rupturas e mudanças
“Em 2016 assistimos uma ruptura democrática significativa, desde então é mais fácil alterar as normas do que tomar medidas para enfrentar os problemas. A Anvisa agora só classifica os produtos que causem morte. Problemas oftalmológicos e de pele, por exemplo não são mais analisados”.
Ela lamenta que, desde 2015, não se tem mais a análise de resíduos tóxicos nos alimentos “e as crianças estão se alimentando dessas comidas nas escolas”.
Sem fim
“Os desastres ambientais no Brasil são acidentes químicos ampliados, assim como a exposição continuada a agrotóxicos pulverizados. Os impactos não são delimitados no tempo e no espaço, são espalhados e se prolongam no tempo. Situações de risco que vão se multiplicando. E o maior impacto é na saúde mental das populações atingidas, como em Brumadinho, Mariana e Rio Doce. Temos que dar mais visibilidade a tudo isso. Há uma tentativa de criar um silêncio artificial para que todos esqueçam o que aconteceu”, denuncia Jorge Huet Machado, pesquisador da Fiocruz.
Para Thaís Garcia, defensora pública federal “vivemos uma situação de contaminação progressiva provocada pela liberação acelerada de agrotóxicos. E o Estado brasileiro nunca esteve preparado para agir em desastres ambientais, e isso desde o Césio 137 em 1987. E quem arca com as consequências desses desastres é a população mais pobre”.
Garcia ainda faz uma reflexão. “A terra e os rios estão mortos, e as pessoas também. No caso do Rio Doce, sem nenhuma reparação. O Estado brasileiro incentiva isso na medida em que garante a isenção de tributação para importação de agrotóxicos em detrimento da população e da ausência de políticas públicas. O que pode acontecer daqui para frente, se já temos esses maus exemplos e agora o aumento da mineração na Amazônia?”
Também defensora pública, Paloma Rebouças destaca que “temos percebido que, a cada desastre ocorrido, é uma bater de cabeça das instituições públicas e privadas. Isso demonstra que nosso sistema de proteção ambiental precisa crescer muito para funcionar minimamente”.
Outros exemplos são apresentados por Paula Nunes, da Conectas Direitos Humanos. “No Porto de Suape há um acúmulo de violações de direitos humanos. O que era uma promessa de desenvolvimento virou um grande de depósito de resíduos, mudança radical de vida para pescadores e quilombolas, contaminação e remoção forçada de comunidades. O mesmo acontece no Porto de Aratu, onde as comunidades pesqueiras quase não conseguem comer por causa dos depósitos de óleo das refinarias, além da perseguição e ameaças às lideranças da comunidade local”.
Adair Almeida, geraizeiro do norte de Minas Gerais, conta que “desde a década de 70 resíduos tóxicos são derramados nas nossas terras, meu pai e minha mãe morreram de câncer por causa disso. Isso é triste, mas dá indignação para lutar por mudanças”.
O relator
Baskut Tuncak afirma que ficou comovido com o que ouviu durante a audiência pública. “Quero saudar todos vocês pela coragem pelo que estão fazendo, mesmo com ameaças de morte e agressões. A Constituição brasileira não favorece apenas os brasileiros, mas é uma inspiração para outros países. Porém, o que estamos vendo é uma reversão dos valores quando falamos em questões ambientais”. Ele chama a atenção para o uso de medidas ambíguas, perda de diversidade e a depredação de saúde. “Isso tudo provocado pela extração de mercúrio, indústrias extrativistas, pesticidas na atividade agrícola”.
Tuncak reconhece que há “uma diminuição do espaço para a participação popular, graves ataques aos defensores ambientas, aos direitos humanos, represálias, intimidações, até assassinatos por causa do seu ativismo em defesa dos direitos universais”.
O resultado da missão de Baskut Tuncak no Brasil será apresentado em um relatório final, que vai ser entregue na sede das Nações Unidas em Genebra, em setembro de 2020.
Vida que segue
“Sou camponesa e minha tarefa é produzir comida e não economia, com diversidade de produtos animas e vegetais. Não é verdade que precisa de veneno para produzir comida e acabar com a fome. O que precisa é distribuição de terra e políticas públicas. A fome tem aumentado. Temos um desgoverno para os direitos humanos e para os bens da natureza”, relata Antonia de Melo Silva, coordenadora Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
“Fui vítima dos agrotóxicos três vezes. Na infância tive intoxicação por veneno, na adolescência meu pai morreu com 25 tiros, e gora tenho uma filha de 3 anos com puberdade precoce por causa dos agrotóxicos. A mesma empresa que produz o agrotóxico produz o remédio para intoxicação, e agora só falta fazer convênio com a funerária”.
Pedro Calvi / CDHM